Antes da mitologia pagã se infiltrar dentro dos moldes do
Cristianismo, Sheol era puramente sepultura. É claro que a sua aplicação varia
de passagem a passagem, mas nunca no sentido mitológico de “habitação de
espíritos”. O Sheol bíblico é um local de silêncio, e não de gritaria do
inferno:
“Os mortos, que
descem à terra do silêncio, não louvam
a Deus, o Senhor” (cf. Salmos 115:17)
“Se o Senhor não fora em meu
auxílio, já a minha alma habitaria no lugar do silêncio” (cf. Salmos 94:17)
Mais claro ainda é o Salmo 94:17, que diz de forma enfática
que o que habita no silêncio é a própria alma, derrubando a toda e qualquer
tentativa de vulgarizar o termo como se fosse “silêncio somente para o corpo”.
O salmista sabia muito bem que o local para onde iria após a morte seria de
silêncio, e não de louvores entre os salvos ou de gritaria do inferno.
Convenhamos: qual é o lugar do “silêncio” que o salmista fala? Claramente a
sepultura. O local para onde a alma vai após a morte (cf. Sl.94:17), em estado
de total inconsciência (cf. Ec.9:5,6; Ec.9:10; Sl.146:4; Sl.6:5; Sl.30:9;
Sl.88:12). Outra prova clara de que os hebreus do Antigo Testamento sabiam
muito bem que Sheol não era inferno, mas sim sepultura, é Jacó enterrando o seu
filho José:
“E
levantaram-se todos os seus filhos e todas as suas filhas, para o consolarem;
ele, porém, recusou ser consolado, e disse: Na verdade, com choro hei de descer
para meu filho até o Sheol. Assim o chorou seu pai” (cf. Gênesis 37:35)
Jacó
evidentemente ainda não sabia que na mitologia pagã grega (de imortalidade da
alma) o Hades ficava no centro da Terra. Jacó foi cavando até o inferno para
enterrar o seu filho José? Não, Jacó sabia muito bem que Sheol era puramente
sepultura. Ele sabia disso porque essa era a crença da época, o sentido puro de
Sheol.
Ademais,
Jacó foi enterrar o corpo morto
de José e
não uma alma ou espírito incorpóreo. Sheol não é um local de espíritos sem corpo,
mas sim de corpos mortos. Sheol é claramente identificado como sendo sepultura,
o pó da terra. Outras inúmeras passagens nos trazem um sentido completo de que
Sheol não era habitação consciente de espíritos desencarnados. Alguns exemplos,
por exemplo, podem ser encontrados em Jó e em Salmos:
“Porventura não são poucos os meus dias? Cessa, pois, e deixa-me,
para que por um pouco eu tome alento. Antes que eu vá para o lugar de que não
voltarei, à terra da escuridão e da
sombra da morte” (cf. Jó
10:20,21)
“Será que
fazes milagres em favor dos mortos? Será que eles se levantam e te louvam? Será que no
Sheol ainda se fala do teu amor? Será que naquele lugar de destruição se fala
da tua fidelidade? Será que naquela escuridão são vistos os teus
milagres? Será que na terra do esquecimento se pode ver a tua fidelidade?” (cf. Salmos
88:10-12).
Como podemos ver, a terra era claramente
descrita como uma “escuridão”. Ora, se o Hades é um local de tormento, com fogo e tudo,
então o fogo remeteria à luminosidade. O local não seria nem lugar de
“escuridão” e muito menos lugar de “densas trevas”. Onde há fogo, há luz. Essa
descrição do Sheol bíblico anula a concepção pagã em um Hades cheio de fogo e
espíritos vivos ali queimando. O Salmo 49:14 também deixa claro que até as
ovelhas vão para o Sheol na morte:
“Como
ovelhas são postas na sepultura [Sheol, no original hebraico]...” (cf. Salmos 49:14)
É
óbvio que o Sheol é apenas o pó da terra, o destino de todas as criaturas
viventes. Jó também nos
esclarece que o Sheol bíblico está longe de ser morada de espíritos queimando
em meio às chamas, ao dizer que naquele lugar ele “já
agora repousaria tranquilo; dormiria, e, então, haveria para mim descanso...
Ali, os maus cessam de perturbar, e, ali, repousam os cansados; os prisioneiros
também desfrutam sossego, já não ouvem
mais os gritos do feitor de escravos” (cf. Jó 3:13,17,18). Já não se
ouve mais gritos, algo inconcebível caso Jó tivesse a ideia de que aquele local
era um lugar de tormento ou de gritos de espíritos em meio às chamas.
No
livro de Eclesiastes também lemos:
“Tudo
quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças; porque no além
[Sheol], para onde tu vais, não há obra,
nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma” (cf. Eclesiastes 9:10)
A palavra usada
em Eclesiastes 9:10 com relação ao Sheol é que não há chokmah [inteligência,
razão]. Morre o homem e o ser racional se vai. Não há inteligência, não há
consciência. Biblicamente, Sheol não é, e nunca foi, uma morada de
espíritos vivos e conscientes em alegria ou em tormento com fogo. Como se não
fosse suficientemente claro o fato de que no Sheol não há obra, nem projeto,
nem conhecimento, e nem sabedoria, o salmista afirma que “quem morreu não se lembra de ti; e no Sheol quem te louvará?” (cf. Sl.6:5). É evidente que no
Sheol não se pode louvar a Deus. Fica a pergunta: que tipo de “espírito” que é
salvo e vai para este lugar sem poder louvar a Deus?
O único argumento
utilizado pelos imortalistas na tentativa de contradizer o fato bíblico de que
o Sheol é o equivalente à sepultura é que os hebreus tinham palavra específica
para “sepultura”, que é qéver, então
Sheol deve significar algo diferente disso. Isso, por si só, não significa
nada, pois no hebraico e no grego há diversas palavras sinônimas, que possuem a mesma aplicação prática. Na própria língua
portuguesa, aplicamos exterminar e aniquilar com o mesmo sentido, bem como adversário e antagonista, oposição e antítese, enfermo e doente, desagradar e descontentar, futuro e porvir, enorme e imenso, imparcial e neutro, dentre tantas outras palavras sinônimas. Diante disso, por
que Sheol e sepultura não podem ser palavras sinônimas, assim como sepultura e túmulo?
Em segundo lugar,
existe uma diferença básica entre Sheol e
qéver. Hades ou Sheol não se refere a um único sepulcro (gr.: tá‧fos), nem a um único túmulo
(gr.: mné‧ma), nem a um único túmulo
memorial (gr.: mne‧meí‧on), mas à sepultura comum
da humanidade, onde os mortos e enterrados não são vistos. Assim, vemos que
Sheol é aplicado quando a referência é à sepultura comum da humanidade (em um
sentido coletivo), enquanto qéver se
refere ao um único sepulcro (em um sentido individual).
Sheol é o sentido
mais amplo da sepultura, tendo a mesma aplicação
prática desta, pois quem está na sepultura está no Sheol, da mesma forma
que quem está em São Paulo está no Brasil. Sheol é o “mundo dos mortos”, não
como um local de habitação de espíritos conscientes, mas de almas mortas (cf.
Nm.31:19; 35:15,30; Js.20:3,9; Gn.37:21; Dt.19:6,11; Jr.40:14,15; Jz.16:30; Nm.23:10),
em local de total silêncio (cf. Sl.115:17; Sl.94:17), e em estado de total
inconsciência (cf. Sl.146:4; Sl.6:5; Ec.9:5,6; Ec.9:10).
No
caso da revolta de Coré, por exemplo, relatada em Números 16, a terra “abriu a
sua boca” e os seus seguidores “desceram vivos ao
Sheol” (cf. Nm.16:30; Nm.16:33). Seria extremamente inimaginável
pensarmos que a terra abriu a boca para eles caírem até o centro da terra onde
ficaria o Sheol, sendo que no meio dessa queda os seus corpos foram transformando-se
automaticamente em espíritos desencarnados. A evidência aqui é tão forte que os
próprios imortalistas admitem que Sheol aqui significa o pó da terra, corpos
físicos sendo esmagados pela força da natureza através da ação divina (embora
eles afirmem que este caso é uma “exceção”, o que vemos que não – é a regra!).
Obviamente
que o que aconteceu realmente é que a terra abriu a boca e os tragou enquanto
ainda estavam vivos, descendo para a “cova” (ou “pó”), o que mostra a total
correspondência entre estes dois termos. Mais forte ainda do que isso é o paralelismo
evidente que constatamos em Jó: “Descerá ela às portas do Sheol? Desceremos juntos ao pó?” (cf. Jó 17:16). Aqui vemos Jó fazendo o uso de um paralelismo entre o “Sheol” e o “pó”. Paralelismo é a sucessão de
partes do discurso que tem entre si uma relação de similaridade de conteúdo; um encadeamento
de funções sintáticas idênticas de valores iguais. Jó identifica o Sheol como
sendo a mesma coisa que o pó da terra,
ao relacionar ambos na mesma sentença expondo tal paralelismo. Após afirmar que
ele desceria ao Sheol, afirma categoricamente que este lugar é o pó
(cf. Jó 17:16).
Ainda
que os escritores do Antigo Testamento falassem constantemente em Sheol,
desacreditavam completamente em qualquer estado intermediário. Talvez seja por
isso que o apóstolo Paulo, em suas epístolas, não tenha mencionado absolutamente
nenhuma vez a palavra “Hades” – o termo já estava paganizado. Aliás, nem Paulo,
nem Tiago, nem Pedro, nem Judas, e nem o desconhecido autor de Hebreus: todos
pareciam desconhecer tal palavra, não sendo mencionada em parte nenhuma de suas
epístolas. Só há uma única razão mais provável para isso, que é exatamente não
querer confundir os leitores dualistas com o sentido pagão de Hades, já em
vigor em sua época.
O Sheol também é
caracterizado como “a terra das trevas e da sombra
da morte” (cf. Jó 10:21,22), onde os mortos nunca mais vêem a luz (cf.
Sl.49:20; 88:13). É também, como vimos, a “região do silêncio”, e não de
gritaria do inferno ou de louvores do Paraíso (cf. Sl. 94:17; 115:17), para
onde caminha a alma rumo ao local do silêncio (cf. Sl.94:17). A ideia de
descanso ou sono no Sheol fica evidente no livro de Jó que clama em meio a seus
tormentos físicos: “Por que não morri eu na madre?
Por que não expirei ao sair dela? [...] Porque já agora repousaria tranquilo;
dormiria, e então haveria para mim descanso [...] Ali os maus cessam de
perturbar, e ali repousam os cansados” (cf. Jó 3:11,13,17).
No Salmo 141:7
também fica mais do que evidente que Sheol é claramente identificado como
sepultura: “Ainda que sejam espalhados os meus ossos à boca da sepultura [Sheol] quando se lavra e sulca a
terra”. Até os ossos desciam para o Sheol! Se Sheol fosse um local de
morada de “espíritos”, o salmista certamente mencionaria isso, mas além negar
tal fato ele acentua que são os ossos
que descem ao Sheol, o que nos revela que é um local não de “espíritos”, mas de
corpos mortos, que jazem na sepultura.
Um dos textos
mais claros de que o Sheol é uma referência à sepultura é o de Isaías 14:11,
que diz: “Sua
soberba foi lançada na sepultura [Sheol],
junto com o som das suas liras; sua cama é de larvas, sua coberta, de vermes”. O detalhe é que o
texto se refere a ele estar sendo comido de larvas e coberto de vermes,
o que nos mostra a total correspondência entre o Sheol e o túmulo, abaixo da
terra, e de quem estar lá ser um corpo morto, um cadáver, e não alguma alma ou
espírito incorpóreo.
De igual modo,
Davi adverte seu filho Salomão com relação a Simei: “Mas,
agora, não o considere inocente. Você é um homem sábio e saberá o que fazer com
ele; apesar de ele já ser idoso, faça-o descer
ensangüentado à sepultura [Sheol]”
(cf. 1Rs.2:9). Novamente, o original hebraico verte a palavra “Sheol”, e não
“sepultura” como a maioria dos tradutores preferiram traduzir. Aqui vemos que
alguma pessoa pode descer ensanguetada
ao Sheol, o que nos mostra claramente que o Sheol não é uma morada de espíritos
incorpóreos, mas sim a própria sepultura, para o qual é o destino dos corpos que morreram (espírito não
sangra!).
Por isso, até mesmo o sangue das pessoas
descem ao Sheol [sepultura]. Isso explica o porquê que em absolutamente nenhuma
parte das Escrituras é mencionado espírito-ruach/pneuma no Sheol/Hades. Este nunca foi
algum tipo de “morada de espíritos”! Fica mais do que claro que nenhum escritor bíblico pensava em Sheol
como uma morada consciente de espíritos desencarnados, como um local de
tormento ou suplício. Se fosse esse o sentido primário de Sheol, então veríamos
uma infinidade de passagens bíblicas que relatam tal fato, o que não é verdade.
Aliás, nem sequer o elemento “fogo”
aparece relacionado em qualquer descrição bíblica do Sheol. Que maneira
“estranha” de descrever o inferno!
Paz a todos vocês que estão
em Cristo.
Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)
Extraído de meu livro: “A Lenda da Imortalidade da Alma”
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[1] TABOR, James. What the Bible says about Death, Afterlife, and the Future. Disponível
em: <http://clas-pages.uncc.edu/james-tabor/>.
Acesso em: 15/08/2013.
[2] HARRIS, Stephen L. Understanding the Bible: the 6th Edition (McGraw Hill 2002) p. 436.