Desmistificando a lenda de uma alma imortal

14 de dezembro de 2012

O Apocalipse e o tormento eterno


O Apocalipse e o tormento eterno – Sem base bíblica nos 65 livros canônicos da Bíblia que descrevem os acontecimentos de forma literal, os imortalistas se veem obrigados a buscarem refúgio no alegórico livro do Apocalipse, o qual é considerado em grande parte figurado, simbólico e hiperbólico por praticamente todos os teólogos e eruditos bíblicos na história. Todos sabem o quão perigoso é fundamentar doutrinas bíblicas tendo por base exclusivamente o Apocalipse, pois, como vimos,  há diversas mensagens que João escreve de modo enigmático, figurativo ou hiperbólico, como Cristo no Céu como cordeiro ensanguentado (cf. Ap.5:6) e com sete chifres e sete olhos (cf. Ap.5:6), estrelas caindo sobre a terra (cf. Ap.6:13), cavalos com cabeça de leão (cf. Ap.9:17) que soltam fogo e enxofre pela boca (cf. Ap.9:17), gafanhotos com coroa de ouro na cabeça e com rosto humano e dentes de leão (cf. Ap.9:7,8), um dragão perseguindo em um deserto uma mulher grávida (cf. Ap.12:13) que tem asas e voa (cf. Ap.12:14), trovões falantes (cf. Ap.10:3), altares falantes (cf. Ap.16:7), duas oliveiras que soltam fogo pela boca (cf. Ap.11:4,5), dentre diversas outras linguagens claramente metafóricas, sem nada de literal.

Se é assim em todo o Apocalipse, por que razão a linguagem de um tormento eterno teria que ser necessariamente literal? Os imortalistas demonstram completa falta de critério em estabelecerem doutrinas em cima de livros que são abertamente não-literais. A maioria dos eruditos bíblicos das mais diversas frentes escatológicas concordam que o Apocalipse é literal do capítulo 1 ao 3, ao enviar as cartas para as sete igrejas em uma linguagem clara e não-enigmática, passando a fazer amplo e rico uso de simbolismos durante todo o curso e descrição da grande tribulação, do capítulo 4 até o capítulo 20, voltando a ser literal nos últimos dois capítulos, com a descrição da nova ordem na nova terra. Não obstante, os imortalistas pegam duas passagens em contexto alegórico para fundamentar sua tese no tormento eterno dos ímpios, uma delas que inclusive nada fala de tormento eterno! Ela se encontra em Apocalipse 14:9-11, no texto que diz:

“E seguiu-os o terceiro anjo, dizendo com grande voz: Se alguém adorar a besta, e a sua imagem, e receber o sinal na sua testa, ou na sua mão, também este beberá do vinho da ira de Deus, que se deitou, não misturado, no cálice da sua ira; e será atormentado com fogo e enxofre diante dos santos anjos e diante do Cordeiro. E a fumaça do seu tormento sobe para todo o sempre; e não têm repouso nem de dia nem de noite os que adoram a besta e a sua imagem, e aquele que receber o sinal do seu nome (cf. Apocalipse 14:9-11) 

Nestes versos, existem três coisas que eles destacam. São elas: 

1º “...e será atormentado com fogo e enxofre” (v.10) 

Este texto diz apenas que serão atormentados, não diz que o tormento será sem fim como em um processo infindável. A Bíblia não diz que Deus irá deixar os ímpios sem castigo, mas que esse castigo será respectivo e proporcional aos pecados de cada um, e não eterno a todos indiscriminadamente. Foi por isso que o próprio Senhor Jesus disse: 

“Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites (cf. Lucas 12:47-48) 

Cada um será castigado com o tanto proporcional aos seus pecados. Os justos herdarão a vida eterna por graça através da fé, e não por merecimento. Os ímpios, contudo, que não alcançaram a graça, serão castigos por aquilo que mereceram. É por isso que uns levam “muitos açoites”, enquanto outros levam apenas “poucos açoites”. Note que ninguém é castigo com “infinitos açoites”. Logicamente, o eterno não pode ser considerado “pouco”.  Sendo assim, o castigo aos pecadores é bíblico. O que não é bíblico é o horror que é pregado em muitos lugares sobre um tormento eterno. Portanto, sim, os ímpios serão atormentados, mas não: não será eternamente pelo processo, mas pelos efeitos irreversíveis de sua destruição final e completa.

2º “...e a fumaça do seu tormento sobe para todo o sempre” (v.11) 

Curiosamente, este texto fala da fumaça e não do fogo propriamente dito, e muito menos do tormento daqueles que lá estariam. Como os eruditos bíblicos anglicanos John Stott e David Edwards assinalam: 

“O fogo mesmo é chamado ‘eterno’ e ‘inextinguível’, mas seria muito estranho se aquilo que nele fosse jogado se demonstrasse indestrutível. Esperaríamos o oposto: seria consumido para sempre, não atormentado para sempre. Segue-se que é o fumo (evidência de que o fogo efetuou seu trabalho) que ‘sobe para todo o sempre’ (Ap.14:11)”[1] 

Novamente, vemos que este texto, como os demais, está ressaltando os efeitos da destruição, e não um processo eterno e sem fim de tormento. O que é eterno ou inextinguível não é o tormento dos ímpios, mas sim o fogo que nos casos de Sodoma e Gomorra causou a destruição completa e irreversível  das cidades e seus habitantes, condição esta que permanece para sempre (cf. Jd 7). Apocalipse 14:11 não descreve um processo infinito, mas um ato cujos resultados serão permanentes, irreversíveis. 

Compare, por exemplo, Apocalipse 14:11 com Isaías 34:9-10, que fala o seguinte sobre Edom:

“E os seus ribeiros se tornarão em pez, e o seu pó em enxofre, e a sua terra em pez ardente.Nem de noite nem de dia se apagará; para sempre a sua fumaça subirá; de geração em geração será assolada; pelos séculos dos séculos ninguém passará por ela” (cf. Isaías 34:9,10)

Ambos os textos falam de condenações divinas, de fogo e enxofre e de uma fumaça que sobe para sempre. Mas em Edom não há nenhuma fumaça literalmente “subindo para sempre” até os dias de hoje, e muito menos pessoas ímpias queimando até hoje naquele lugar. Evidentemente, a descrição de Isaías e João é hiperbólica, relatando os efeitos destrutivos irreversíveis do fogo, que é para sempre, e não de uma fumaça que literalmente não apaga nunca ou de um fogo que literalmente está aceso para todo o sempre. Se com Edom não existe nenhum fogo ou fumaça literalmente em atividade desde aqueles dias até hoje, por que deveríamos pensar o contrário sobre o destino final dos ímpios, ainda mais levando-se em conta que o Apocalipse é ainda mais alegórico que Isaías?[2]

3º “...e não tem repouso nem de dia nem de noite” (v.11) 

Essa frase (“não tem repouso”) tem sido interpretada como uma evidência para o tormento eterno. Infelizmente, tal “evidência” só existe para aqueles que não sabem ou não querem ler o contexto, pois dois versos depois o próprio João explica o que era esse “descanso” que ele se referia contextualmente[3]:

E ouvi uma voz do céu, que me dizia: Escreve: Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das suas obras, e as suas obras os seguem” (cf. Apocalipse 14:13) 

Como vemos, para João o “descanso” do cristão é o descanso celestial, como ele deixa claro nos versos seguintes a esse usado pelos imortalistas. Sendo assim, a descrição apocalíptica acerca dos ímpios “não terem descanso” está no mesmo sentido expresso em Apocalipse 14:13 – do descanso das suas obras, a Jerusalém celestial. Se o sentido de “ter descanso” é de descansar das suas obras no Paraíso celestial, então “não ter descanso” é não descansar de suas obras (cf. Ap.14:13), precisamente porque as suas obras foram más.  

O texto bíblico está simplesmente refutando a crença na salvação universal (também conhecida como universalismo) que ensina que todos os ímpios terão por fim o descanso eterno do Paraíso, após sofrerem por certo tempo. Eles não terão esse descanso eterno do Paraíso nem de dia nem de noite. O texto, portanto, não está tratando do tormento eterno, mas sim de serem “eternamente banidos da face do senhor e da glória do seu poder” (cf. 2Ts.1:9). Portanto, absolutamente nada em Apocalipse 14:9-11 constitui uma prova conclusiva a favor do tormento eterno dos ímpios. Vamos, então, para o outro texto apocalíptico utilizado pelos imortalistas para sustentar essa doutrina:

“E o Diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde estão a besta e o falso profeta; e de dia e de noite serão atormentados pelos séculos dos séculos” (cf. Apocalipse 20:10)

Em primeiro lugar, uma importante observação deve ser feita sobre este versículo, que o difere essencialmente dos demais: nele, não há qualquer menção aos não-salvos, mas apenas ao diabo, a besta e o falso profeta. Em outras palavras, ainda que tomássemos esse verso literalmente e sem qualquer hipérbole ou alegoria caracteristicamente apocalíptica, no máximo o que este texto poderia provar seria o tormento eterno do diabo, mas não o tormento eterno de todos os humanos que foram condenados. Usar este verso como “prova” do tormento eterno dos pecadores é não observar o contexto óbvio da passagem – mais uma vez, a tirar de seu contexto.

Em segundo lugar, este texto nada mais é senão uma hipérbole empregada por João, assim como outras várias que ele emprega ao longo de todo o livro. Hipérbole é “uma figura de estilo que incide quando há exagero ou demasia propositada num conceito, expressa de modo a definir de forma dramática aquilo que se ambiciona vocabular, transmitindo uma ideia aumentada do autêntico. Em palavras mais simples, hipérbole é ‘expressar uma ideia de forma exagerada’”[4]. Em nosso cotidiano é muito comum expressarmos hipérboles, como quando dizemos que “isso me matou de rir”, que “chorei rios de lágrimas”, que “estou morrendo de fome” ou que “já te disse mil vezes para não fazer isso”. João, por estar escrevendo um livro apocalíptico, não hesita em fazer amplo uso de hipérboles e alegorias, como quando ele diz que uma estrela caiu na terra:

“E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte” (cf. Apocalipse 6:13)

Hoje em dia já se sabe que as estrelas possuem um tamanho maior que o do nosso planeta, e se uma delas caísse na Terra era o fim da vida de todos que aqui vivemos, o Apocalipse teria terminado neste capítulo 6 e nem existiria um capítulo 7 para contar outros acontecimentos posteriores na tribulação! Se isso aconteceria com uma única estrela caindo, imagine estrelas, no plural, como diz João! Obviamente essa é uma clara hipérbole empregada por ele, para algo que de fato vem a ser pequenos meteoritos ou mera alegoria ou figura de linguagem.

Dificilmente também alguém pensaria que “o sol tornou-se negro como saco de cilício, e a lua tornou-se como sangue” (cf. Ap.6:12) sem ser isso uma hipérbole, ou que o Céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares” (cf. Ap.6:14). Imagine o que aconteceria se o Céu fosse literalmente “retirado” e se todos os montes que existem em todo o planeta fossem removidos dos seus lugares! Por acaso seria possível existir vida na terra durante todo o restante da tribulação? Lógico que não!

A questão aqui é simples. Se João pôde ser hiperbólico ao extremo ao tratar desses acontecimentos, por que não teria sido ao falar sobre o destino do diabo em Apocalipse 20:10? Ainda mais se levássemos em consideração que nem sempre na Bíblia o termo aion é utilizado para designar necessariamente algo sem fim – e isso até mesmo quando os escritores bíblicos não estão usando hipérbole e não estão escrevendo livros alegóricos(!) – como é que bem no Apocalipse, repleto de alegorias e hipérboles, aion deveria significar literalmente um período sem fim?

Vemos, por exemplo, Davi descrevendo no Salmo 23:6 que “habitarei na casa do Senhor para sempre. Em linguagem semelhante, Jonas afirma: “Desci até à terra, cujos ferrolhos se correram sobre mim para sempre, contudo fizestes subir da sepultura a minha vida” (cf. Jn.2:6). Contudo, este “para sempre” não poderia ser mais breve: durou apenas três dias! Também vemos que a lepra que atingiu a Geazi (servo do profeta Eliseu) “se pegará a ti e à tua descendência para sempre (cf. 2Rs.5:27). Será que nos dias de hoje existem leprosos sofrendo de tal enfermidade pelo fato de serem descendentes do problemático servo do profeta? Se a lepra alcançaria “a ti... para sempre”, será que após 2900 anos Geazi continua leproso?

Ana relata ao seu marido Elcana: “Depois que o menino for desmamado, eu o levarei e o apresentarei ao Senhor, e ele morará ali para sempre (cf. 1Sm.1:22). Contudo, o “para sempre” aqui duraria até o tempo de sua dedicação, ou seja, até o término de vida dele. O Novo Testamento segue a mesma linha do Antigo, já que a palavra grega usada, “aion”, nem sempre significa “eterno” no sentido absoluto da palavra, mas “perdurado por um tempo”, tendo assim um sentido de tempo indeterminado, como aponta a Concordância de Strong, um “período de tempo, idade, geração”[5]. Ou seja: não necessariamente eterno!

Em Mateus 13:40, o texto grego diz: “sunteleia tou aion”. A palavra sunteleia quer dizer “consumação” – e logo em seguida vem o aion! É óbvio que o eterno (que não tem fim) não pode ser consumado (ter um fim). A referência é simplesmente ao fim de uma era, o mesmo que acontece com o destino final dos ímpios. Paulo escreve que “tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos (cf. 1Co.10:11). Aqui a palavra traduzida por “séculos” é a mesma palavra grega aion, mas vemos que o aion pode chegar ao fim [katantao]!

A mesma linguagem é empregada pelo autor de Hebreus: “Mas agora na consumação dos séculos uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (cf. Hb.9:26). Novamente os tradutores verteram o aion por “séculos”, porque o texto diz que o “aion” já foi chegado na primeira vinda de Cristo, então ele não é necessariamente eterno. Aliás, o termo “consumação dos séculos”, originalmente sunteleia aionios, aparece bastante nas Escrituras, sempre se referindo ao fim deste mundo, antes de chegar novos céus e nova terra:

“Assim como o joio é colhido e queimado no fogo, assim será na consumação deste século [sunteleia tou aiônos] (cf. Mateus 13:40)

“Assim será na consumação dos séculos [sunteleia tou aiônos]: virão os anjos, e separarão os maus de entre os justos” (cf. Mateus 13:49)

Nessas referências, fica claro que o aion tem um fim, que é no final desta era, ou no fim do mundo, como vertem algumas traduções, dando lugar depois aos novos céus e nova terra. Em outras palavras, o aion nestes textos se estende apenas até o fim desta terra, antes de chegar a nova terra. Isso prova que o aion pode ser perfeitamente colocado quando a referência diz respeito apenas até o fim desta terra, sem se prolongar à nova terra. Se é assim em tantos exemplos bíblicos, por que o mesmo não poderia se repetir em Apocalipse 20:10? Se em Mateus 13:40 e 13:49 o aion pode ter um fim com a criação da nova terra, por que em Apocalipse 20:10 o aion também não pode ter um fim com a criação da nova terra, ainda mais estando em contexto alegórico e hiperbólico?

Vemos que é frequente o uso do aion onde, de fato, existe um fim. O erudito Henry Feyerabend faz as seguinte ponderações sobre o aion e suas durações:

“51 vezes no Novo Testamento, aionios se aplica à eterna alegria dos redimidos, o que, é claro, não possui limitação de tempo. Pelo menos 70 vezes na Bíblia, essa palavra qualifica objetos de uma natureza limitada e temporária; assim, indica apenas uma duração indeterminada. Quando lemos que Deus é ‘eterno’, isso é verdadeiramente eterno, como entendemos o termo. Quando lemos que as montanhas são ‘perpétuas’, significa que duram tanto quanto possível durar uma montanha”[6] 

Isso porque a Bíblia fala sobre “colinas eternas” (cf. Gn.49:26), de “outeiros eternos” (cf. Dt.33:15) e de “montes perpétuos” (cf. Hc.3:6). Evidentemente, as colinas, outeiros e montes terrenos tem um fim de suas existências, não são absolutamente “eternos”, no sentido mais pleno da palavra. Igualmente, o aspergir do sangue na festa da páscoa era “ordenança eterna” (cf. Êx.12:24), tanto quanto era a herança de Calebe (cf. Js.14:9), a lepra de Geazi (cf. 2Rs.5:27) e a duração do serviço de um escravo (cf. Êx.29:9; 40:15; Lv.3:17). Todas essas coisas tinham, naturalmente, um fim temporal.

A Bíblia diz que Arão devia “queimar incenso diante do Senhor, para o servir e para dar a bênção em seu nome, eternamente (cf. 1Cr.23:13). Este “eternamente”, contudo, durou menos de 123 anos, período de vida de Arão. Semelhantemente, o templo construído por Salomão seria uma “eterna habitação” (cf. 1Rs.8:12,13) para Deus, que, todavia, durou apenas alguns séculos antes de ser destruído pelos babilônicos. Davi relata que Deus o escolheu para que fosse eternamente rei de Israel (cf. 1Cr.28:14). Isso foi equivalente a um período de quarenta anos (cf. 1Rs.2:10,11). O apóstolo Paulo se refere ao escravo Onésimo dizendo que este deveria voltar a servir a seu senhor “a fim de que o possuísseis para sempre (cf. Fm.15,16), ainda que esse “para sempre” significasse somente até o fim da vida do escravo. 

Onde queremos chegar com tudo isso? Simplesmente que, se o “para sempre” (aion) é muitas vezes empregado por escritores bíblicos em um contexto natural e não-alegórico e em livros fundamentalmente literais, e mesmo assim tem um fim, por que João, ao escrever um livro basicamente alegórico e em um contexto hiperbólico deveria dar um sentido pleno e literal ao aion? Ora, à luz do contexto vemos que o fogo os consumiu“E subiram sobre a largura da terra, e cercaram o arraial dos santos e a cidade amada; e de Deus desceu fogo, do céu, e os consumiu” (cf. Ap.20:9). Portanto, é totalmente compreensível que, diante do contexto, o aion equivale até serem consumidos os seus corpos, que foram “devorados” pelo fogo, conforme a própria descrição apocalíptica.

Assim como as montanhas, outeiros e montes são eternos até o dia em que “eles perecerão”(cf. Hb.1:11) junto com a terra, que o reinado de um rei era eterno até o dia de sua morte, que um escravo seria para sempre de seu senhor até o fim desta vida, que o templo seria uma eterna habitação até a destruição futura pelos babilônicos, que o aspergir do sangue era perpétuo até a celebração da páscoa cristã, dentre tantos outros exemplos semelhantes, igualmente o sofrimento de Satanás e dos ímpios será “eterno” (aionaté que os seus corpos sejam completamente consumidos pelo fogo (cf. Ap.20:9) e Deus fazer novos céus e nova terra (cf. Ap.21:1), onde o mar já não existe (cf. Ap.21:1) – e, presumivelmente, o lago de fogo também não!

Em todos aqueles casos, eles são eternos “até que” se dê um outro acontecimento. No caso de Apocalipse, o “eterno-aion” vai “até que” sejam criados novos céus e nova terra, e “o mar já não existe” (cf. Ap.21:1) – nem o “lago de fogo”! Isso nos mostra claramente que, aqui, o aion equivale até ao momento em que os seus corpos (que não são incorruptíveis como os dos justos – cf. Gl.6:8; Rm.2:7) pereçam completamente até ao ponto de virar cinzas (cf. Ml.4:1-3; 2Pe.2:6).

Embora na nossa língua possa parecer esquisito que exista um “para sempre... até que” ocorra alguma outra coisa, isso não é incomum quando tratamos de língua grega e hebraica: “O palácio será abandonado; a cidade populosa ficará deserta; Ofel e a torre da guarda servirão de cavernas para sempre, até que se derrame sobre nós o Espírito lá do alto: então o deserto se tornará em pomar e o pomar será tido por bosque” (cf. Is.32:14,15). Aqui vemos o "para sempre" sendo imediatamente sucedido pelo "até que", em contexto imediato. Portanto, o “para sempre” pode ter um fim, dependendo do contexto em que está inserido, e vimos que Apocalipse 20:10 está em um contexto hiperbólico.

Com efeito, basear a crença no tormento eterno em cima de uma hipérbole apocalíptica que em si mesma não implica necessariamente em algo eterno, que o contexto descreve aniquilamento e não prosseguimento eterno de vida e onde o autor frequentemente emprega figuras de linguagem é no mínimo querer amputar a exegese. O que podemos inferir dos acontecimentos relatados por João no capítulo 20 em seu contexto é que:

 Os ímpios serão ressuscitados no último dia (cf. Ap.20:5).

2º O diabo irá reunir todos eles na marcha contra o Cordeiro e os Seus santos (cf. Ap.20:7,8).

3º Irá cair fogo do Céu até consumi-los completamente (cf. Ap.20:9).

4º Os efeitos dessa destruição duram eternamente (cf. Ap.20:10).

 O tormento como um processo dura até que Deus crie novos céus e nova terra (cf. Ap.21:1), pois este fogo consumidor se passa na superfície desta terra (cf. Ap.20:9) e logo em seguida é dito que Deus criará uma “nova terra” (cf. Ap.21:1), sem qualquer menção de os ímpios do verso 9 terem sido “transferidos” para outro ponto do Universo onde continuariam a queimar eternamente.

6º Nessa nova criação de Deus já não mais haverá o “inferno” (lago de fogo), porque não mais haverá morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, porque essas são coisas da criação passada (cf. Ap.21:4), a que vivemos hoje.

7º Portanto, se não há morte, não pode haver um processo eterno de pecadores sofrendo morte eterna consciente; se não há tristeza, não há parentes e amigos nossos que estarão ardendo literalmente em um lago de fogo e enxofre, o que nos causaria no mínimo tristeza; se não há choro, então o local de choro e ranger de dentes já chegou ao fim; e, se não há dor, então não há pessoas queimando e sofrendo dores horríveis para sempre em um lago de fogo.

Todas essas coisas – dor, morte, tristeza, choro e luto – são características presentes nesta criação, mas não na nova criação de Deus. Essas novas promessas de Deus com o estabelecimento de novo Céu e nova terra entram em direto contraste com a “antiga ordem” (cf. Ap.21:4), isto é, a ordem presente. A promessa de Deus é que nessa nova criação, diferentemente desta criação atual, não haverá mais nada disso! Mas se existisse inferno eterno, pecadores pecando eternamente, criaturas murmurando e blasfemando contra Deus para todo o sempre, choro e ranger de dentes sem fim, tristeza e angústia da parte daqueles que veem os seus amigos e parentes sendo torturados sem perdão e das próprias pessoas que estão sofrendo horrivelmente... então nada de diferente em relação a essa ordem presente existiria na prática.

Para sempre haveria um ponto negro no universo, para sempre haveria o mal,  o pecado, os pecadores, o diabo, a blasfêmia, a morte, a dor, o pranto, a tristeza, o sofrimento,  o inferno. A única forma de destruir o mal para estabelecer uma nova ordem que seja totalmente diferente da atual é eliminando os que praticam o mal. Só assim teríamos uma nova ordem repleta de paz e de harmonia. Só assim a natureza teria a gloriosa revelação dos filhos de Deus. Só assim o bem teria uma vitória definitiva e conclusiva sobre o mal. Só assim que o mal e o pecado seriam definitivamente e eternamente extintos da criação de Deus. Em conclusão, Apocalipse 20:10 está em um contexto hiperbólico, onde o aion  dura até a criação da nova ordem de Deus, com novos céus e nova terra, onde o mar (e o lago de fogo) já não existe, mas apenas os justos brilhando no Reino de Deus.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (apologiacrista.com)

Extraído de meu livro: “A Lenda da Imortalidade da Alma”


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[1] STOTT, John; EDWARDS, David. Essentials: A Liberal-Evangelical Dialogue (London: Hodder and Stoughton, 1988), p. 316.
[2] Na verdade, ao longo de todo o Apocalipse o apóstolo João faz menções indiretas a cenas descritas no Antigo Testamento, tanto na condenação aos ímpios como da Babilônia ou “grande cidade”, e é bem provável que ele tenha tomado empréstimo do texto de Isaias 34:9-10 ao falar sobre o destino final dos ímpios assemelhando-o ao destino de Edom, assim como fez em várias outras ocasiões no livro, inclusive na descrição de novos céus e nova terra que em todo o Antigo Testamento só é descrito em Isaías (cf. Is.65:17). Se isso é verdade, deixa ainda mais claro que João não tinha a mínima noção de um tormento eterno aos ímpios ao escrever isso em Apocalipse 14:9-11, mas tinha exatamente a mesma ideia em mente que tinha Isaías em 34:9-10, ou seja, de uma destruição completa com efeitos eternos, e não de um fogo ou fumaça que existe literalmente para todo o sempre. Isso fortalece indiscutivelmente a doutrina aniquilacionista, e não a de um tormento eterno como ensinam os imortalistas.
[3] O autor de Hebreus faz o mesmo em Hebreus 9:10-11.
[4] Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%A9rbole_(figura_de_estilo)>. Acesso em: 27/08/2013.
[5] Léxico da Concordância de Strong, 165.
[6] FEYERABEND, Henry. Um evangelista responde as 101 perguntas mais frequentes. 1ª Edição, Editora Ver Curiosidades: 2000.
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5 comentários:

  1. Boa noite!
    Tenho lido seus estudos de diversos assuntos, mas esse estudo me deixou a entender que você crer no purgatório quando fala nessa passagem da bíblia:
    “Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites” (cf. Lucas 12:47-48)
    Existe o purgatório?
    Desde de já agradeço sua atenção.

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    1. Esse texto não fala do purgatório, mas do castigo no geena, vulgarmente chamado de "inferno". Abs!

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  2. Olá, o purgatório não existe, ele na teologia católica é um estado intermediário entre a morte e a ressurreição, e eu defendo que não existe um estado intermediário. Esse verso de Lucas se refere à condenação no geena, já depois da ressurreição. Não se trata de "purgar pecados" para depois entrar no céu, mas apenas de punir pecados pelo tempo respectivo ao que cada um fez por merecer, e depois disso serão mortos (não entrarão no céu porque não existe segunda oportunidade de salvação para ninguém).

    Abs.

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  3. Eu bt entendi assim...mas tenho uma duvida...sera que ja estamos neste periodo de lago de fogo? Digo isto pq varias profecias ja se cumpriu

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    1. Não, o lago de fogo é após o período milenar e o juízo.

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